Janteloven - parte 1: o que é e como funciona na prática

“Janteloven”, em português “a lei de Jante”, não é uma lei oficial, mas sim um código social não escrito, amplamente reconhecido como uma forma de controle social nos países escandinavos, especialmente na Noruega.

O termo surgiu pela primeira vez no romance do escritor dinamarquês-norueguês Aksel Sandemose, En flyktning krysser sitt spor (Um fugitivo cruza seu caminho), publicado em 1933.

O livro narra a história de Espen Arnakke, um homem que assassina John Wakefield. Ao longo da narrativa, Arnakke reflete sobre sua vida na pequena cidade fictícia de Jante, desde a infância até o momento do crime, tentando compreender os mecanismos que o levaram a esse ponto. No fim, o julgamento recai sobre a sociedade repressiva de Jante, que contribuiu para que ele se tornasse quem se tornou.

Escrevo este texto como referência, já que muito provavelmente voltarei a mencionar esse termo outras vezes aqui no blog.


Nota linguística: Janteloven é a forma definida do termo em norueguês e significa “a Lei de Jante”. Para evitar repetição do artigo (“a Janteloven”), alterno entre Janteloven (forma definida) e Jantelov (forma indefinida), conforme a fluidez do texto.


Janteloven – Os 10 mandamentos de Jante

  1. Du skal ikke tro at du er noe

    (Não pense que você é alguma coisa)

  2. Du skal ikke tro du er like meget som oss

    (Não pense que você vale tanto quanto nós)

  3. Du skal ikke tro du er klokere enn oss

    (Não pense que você é mais sábio do que nós)

  4. Du skal ikke innbille deg du er bedre enn oss

    (Não imagine que você é melhor do que nós)

  5. Du skal ikke tro du vet bedre enn oss

    (Não pense que você sabe mais do que nós)

  6. Du skal ikke tro du er mer enn oss

    (Não pense que você é mais do que nós)

  7. Du skal ikke tro at du duger til noe

    (Não pense que você é bom em alguma coisa)

  8. Du skal ikke le av oss

    (Não ria de nós)

  9. Du skal ikke tro at noen bryr seg om deg

    (Não pense que alguém se importa com você)

  10. Du skal ikke tro at du kan lære oss noe

    (Não pense que você pode nos ensinar alguma coisa)


Essa “lei” descreve a essência do pensamento coletivo escandinavo. A Jantelov representa a ideia de que o bem coletivo deve vir antes do individual. Por um lado, isso contribui para o senso de responsabilidade com o que é público — as ruas são limpas, as praças bem cuidadas, há respeito pelo espaço comum. Por outro lado, não há espaço para o indivíduo se destacar.

Isso impacta, naturalmente, a autoestima das pessoas. Imagine crescer em uma cultura onde, mesmo de forma indireta, por olhares, repreensões ou falta de encorajamento, você internaliza mensagens como:

“Não pense que você é bom em alguma coisa”, “Não ache que alguém se importa com você” ou “Não pense que você pode nos ensinar alguma coisa”. Nada agradável, né?

Existe até uma expressão antiga usada na criação de filhos na Noruega: “Barn skal ses, ikke høres”, crianças devem ser vistas, não ouvidas.

Essa visão começou a mudar com a escritora Anne-Cath. Vestly, que entre 1953 e 2004 publicou mais de 50 livros infantis que, na verdade, também ensinavam aos pais uma forma mais respeitosa e afetiva de educar seus filhos.



Choque cultural: Noruega, Alemanha e Brasil


A primeira vez que ouvi falar da Jantelov foi em 2013, numa aula de norueguês numa universidade na Alemanha. Eu fui a única da turma que achou o conceito positivo; o restante dos alunos, todos alemães, ficou chocado com a minha reação.

Ali estava eu, no meio da sala, cheia de interrogações na cabeça. O que eu não estava entendendo, afinal?

Crescendo num país como o Brasil, onde o racismo é explícito e as desigualdades sociais são gritantes, achei, com toda a minha ingenuidade — para não dizer outra coisa, que a Jantelov era uma ideia boa. Algo que equilibraria mais a sociedade, que nivelaria as pessoas por cima, e não por baixo.

Mas o que essa lei promove, na prática, é uma cultura que inibe a criatividade, a autonomia e a individualidade.

Depois daquela aula, comecei a entender melhor o incômodo dos alemães. Faz sentido: os alemães, além de mais numerosos, são mais inovadores. Contribuíram (e contribuem) demais em áreas como engenharia, comunicação, medicina, filosofia, música…

Claro que os escandinavos também contribuíram, mas numa escala bem menor.

Quantas marcas alemãs você consegue lembrar em cinco segundos? E quantas marcas norueguesas? Pois é.

A Alemanha, desde o século XIX, investiu em universidades e institutos de pesquisa com foco em ciência, engenharia e medicina. O modelo da Universidade de Humboldt, fundado em 1810, influenciou o sistema universitário moderno no mundo todo.

Enquanto isso, a Noruega permaneceu rural por mais tempo, sem polos intelectuais de grande expressão. O foco escandinavo foi, sobretudo, em políticas sociais e distribuição de renda ao longo do século XX.

Assim, eu entendi o seguinte: a mentalidade que a Jantelov representa promove igualdade e modéstia, mas desencoraja ambição e destaque pessoal, ou seja, justamente o que caracteriza muitos grandes inovadores.


Janteloven na prática

Em 2014, me mudei para o interior da Noruega e comecei a ver tudo isso com meus próprios olhos.

Percebi um conformismo invisível: todos se vestiam igual, comiam as mesmas coisas, agiam do mesmo jeito. Quem saía um pouco da linha era visto como estranho.

A Noruega foi um país extremamente homogêneo por quase toda sua história. Só recentemente, com a chegada de trabalhadores imigrantes a partir dos anos 1960,  é que isso começou a mudar. Mas no interior do país, ser diferente ainda é visto com estranheza.

A geografia e o clima também reforçaram esse comportamento. Em condições extremas, sobreviver exigia se adaptar, e não se destacar.


Noruega: um dos países mais conformes do mundo


Uma pesquisa publicada em 2011 na revista Science, coordenada por Michele Gelfand, investigou normas sociais em 33 países, com mais de 6.800 participantes. Ela classificou os países numa escala de “rigidez” e “flexibilidade” social (tightness-looseness).

E adivinha? A Noruega está entre os países mais “tight” (rígidos), ao lado de Coreia do Sul, Índia, Malásia e Paquistão.

O Brasil aparece no extremo oposto da escala, entre os mais “loose” (flexíveis), junto de Hungria, Israel, Estônia, Ucrânia e Países Baixos.

A rigidez cultural foi associada a fatores como escassez de recursos, desastres naturais e ameaças externas, mas o caso norueguês ainda surpreende, dado seu atual ambiente seguro.

Claro que ninguém vai te agredir por se vestir diferente ou por comer outra coisa no Natal além de ribbe (costela de porco) ou pinnekjøtt (costela de ovelha), ou por celebrar o 17. Mai (17 de maio), dia nacional da Noruega, ficando em casa “descansando”. Mas você sente os olhares te julgando, como se perguntassem:

“Por que você acha que pode fazer isso?”


A consequência? Em vez de confronto, vem o isolamento silencioso.

Ninguém te explica o que exatamente você fez de “errado”. Você só deixa de ser incluído.

Não é à toa que tantos estrangeiros acham difícil se integrar verdadeiramente à sociedade norueguesa. E não é fácil mesmo. 


Minha experiência


Vim para a Noruega pela primeira vez como intercambista no último ano do ensino médio. Morei com famílias de origem norueguesa e dinamarquesa, e aprendi bastante sobre a língua e a cultura do país. Contudo, não ouvi, nem por um momento, o termo Janteloven durante o intercâmbio.

Voltei ao Brasil, fiz faculdade, e, depois, voltei para cá para me casar com meu marido, que é norueguês. Achei que, por já conhecer a cultura por dentro, minha readaptação seria fácil. Mas não foi.

Eu era diferente, em praticamente tudo. Vinda de um país diverso como o Brasil, senti o peso do conformismo. E por mais que tenha sido bem recebida pela família do meu marido, comecei a notar, principalmente no ambiente de trabalho, os efeitos da Jantelov.

Um efeito prático que observei foi a konfliktskyhet, a aversão quase crônica ao conflito. Em vários ambientes de trabalho na Noruega, vi líderes hesitarem em orientar novos funcionários de forma clara, com receio de parecerem autoritários ou “melhores que os outros”. Evitavam exigir demais, mesmo quando era necessário. Isso acabava prejudicando o andamento das tarefas, sobrecarregando quem já sabia o que fazer e gerando tensão não dita entre colegas. Ótimo para o clima da empresa, né? Só que não.

Presenciei várias situações em que essa postura, aparentemente gentil e respeitosa, gerou problemas reais: uma pequena confusão acabava virando uma bola de neve simplesmente porque ninguém queria “criar conflito”.

Embora o medo de confronto exista também no Brasil, aqui percebi que ele ganha uma dimensão quase institucionalizada, fortemente influenciada pela ideia de que ninguém deve se destacar, incomodar ou desestabilizar o equilíbrio coletivo, mesmo que isso signifique conviver com o incômodo silencioso. Mesmo que isso signifique, também, que alguém, em algum ponto, vá adoecer por causa dessa sobrecarga e da irritação e estresse causados.

Capa e contracapa do livro Du skal lide for fellesskapet – hvordan norsk jantelov har ført til 800 000 innbyggere med sosial angst (2021), de Miriam Ekelund.

Senti, por anos, que nada do que eu fazia era bom o suficiente. Isso durou até 2021, quando encontrei o livro Du skal lide for fellesskapet – hvordan norsk jantelov har ført til 800 000 innbyggere med sosial angst (Você deve se sacrificar pelo coletivo — como a Lei de Jante causou ansiedade social em 800 mil pessoas na Noruega, em tradução livre)de Miriam Ekelund.

O livro explora profundamente os efeitos da Jantelov na saúde mental dos noruegueses e traz 12 entrevistas com pessoas de diferentes origens, norueguesas e estrangeiras.

Quando eu vi o livro, não pensei duas vezes e comprei. na. hora. A cada página que eu lia, eu parava várias e várias vezes para poder assimilar a informação. Eu me senti tão, mas tão compreendida, que eu chorava sem parar a cada capítulo. Ler este livro foi como se eu estivesse recebendo um abraço do início ao fim. 

Índice do livro Du skal lide for fellesskapet – hvordan norsk jantelov har ført til 800 000 innbyggere med sosial angst (2021), de Miriam Ekelund .

Recomendo demais a leitura para todo estrangeiro vivendo na Noruega que se sente deslocado. Infelizmente, ao escrever este post, descobri que ele está esgotado e que, muito provavelmente, não haverá novas reimpressões.

Mas é possível contatar a biblioteca da sua cidade e perguntar se ele está disponível no catálogo. Caso não esteja, talvez seja possível solicitar o empréstimo de outra biblioteca norueguesa. Também há a opção de acessar o exemplar digital pela Biblioteca Nacional da Noruega (Nasjonalbiblioteket), com algumas restrições.


Só posso dizer que vale o esforço para encontrá-lo e ler em norueguês. Eu prometo!



FIM DA PARTE 1

Termino aqui esta primeira parte sobre a Lei de Jante. Na parte 2, falarei sobre o movimento Anti-Janteloven e o que há entre esses dois extremos.


Reforço que essas são minhas percepções, baseadas na vivência em uma cidade pequena norueguesa. Imagino que, nas cidades maiores, a presença da Jantelov seja mais fraca, pois, com mais diversidade, há, naturalmente, mais espaço para o diferente.


Se você vive na Noruega e não sente isso, deixe um comentário compartilhando sua experiência aqui.

Ou, se preferir, me mande uma mensagem clicando aqui ou por DM no Instagram @casananoruega, eu adoraria conversar mais sobre esse tema!


Nos vemos na parte 2!

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