Janteloven – parte 2: Anti-Janteloven e o caminho da inteireza (Helhetsloven)


Esta é a continuação da reflexão sobre a Lei de Jante (Jantelov, em norueguês).

Na primeira parte, falei em detalhe sobre a Jantelov (Lei de Jante), que é um conjunto de normas sociais não escritas presente na Escandinávia — mas especialmente na Noruega — que valoriza a igualdade, a modéstia e a ideia de que ninguém deve se destacar demais.


Também compartilhei minha experiência ao me deparar com esse código ao chegar na Noruega — onde se destacar pode soar como quebra de contrato social — e complementei com a pesquisa de Michele Gelfand, que aponta a Noruega como um dos países mais rígidos culturalmente.

Por fim, mencionei o impacto psicológico dessa rigidez, especialmente na autoestima e nas relações sociais, e o livro Du skal lide for fellesskapet – hvordan norsk jantelov har ført til 800 000 innbyggere med sosial angst (Você deve se sacrificar pelo coletivo — como a Lei de Jante causou ansiedade social em 800 mil pessoas na Noruega, em tradução livre), escrito por Miriam Eklund, que associa a Jantelov ao alto índice de ansiedade social no país.


Nota linguística: Janteloven é a forma definida do termo em norueguês e significa “a Lei de Jante”. Para evitar repetir o artigo definido em português (“a Janteloven”), alterno entre Janteloven (forma definida) e Jantelov (forma indefinida), conforme a fluidez do texto.


Agora, seguimos com uma pergunta importante: como encontrar um caminho entre pertencimento e autenticidade na Noruega?


Esse dilema tem gerado debates dentro e fora do país. Por um lado, a Jantelov representa um valor profundo da cultura escandinava: o bem comum acima do indivíduo, a simplicidade, a ideia de que ninguém vale mais do que ninguém. Em tempos de individualismo exagerado, há até algo de admirável nisso.

Mas, por outro lado, quando essa norma se torna rígida demais, ela pode sufocar a criatividade, a liberdade de expressão e até o bem-estar emocional. A linha entre humildade e autonegação pode ser tênue — e é exatamente nesse ponto que surge o movimento conhecido como Anti-Jantelov, uma resposta simbólica à rigidez cultural da Jantelov.

Escrita por Erling Førland, a Anti-Jantelov segue o mesmo formato da original: dez “leis”. Mas, como era de se esperar, todas dizem exatamente o oposto.

Veja, abaixo, a versão original da Anti-Jantelov, com uma tradução livre em parênteses:


Anti-Jantelov

  1. Du er enestående (você é único)

  2. Du er mer verdt enn noen kan måle (você vale muito mais do que alguém pode medir)

  3. Du kan noe som er spesielt for deg (você sabe fazer algo que é único seu)

  4. Du har noe å gi andre (você tem algo para dar aos outros)

  5. Du har gjort noe du kan være stolt av (você fez algo de que pode se orgulhar)

  6. Du har store ubrukte ressurser (você tem grandes recursos inutilizados)

  7. Du duger til noe (você é bom em alguma coisa)

  8. Du kan godta andre (você pode aceitar outras pessoas)

  9. Du har evne til å forstå og lære av andre (você tem a capacidade de entender e aprender com os outros)

  10. Det er noen som er glad i deg (alguém ama você)

O movimento Anti-Jantelov não se trata de um grito egocêntrico por atenção, mas de uma resposta à necessidade de espaço para ser quem se é — com talentos, sonhos, opiniões e até com orgulho (saudável) das próprias conquistas. Ele propõe um novo tipo de equilíbrio: um onde é possível fazer parte do grupo sem apagar a própria voz.

Essa tensão entre não se achar melhor e poder ser você mesmo está no centro da vida social norueguesa — e, para muitos imigrantes, também é um grande campo de adaptação. O desafio não é escolher um lado, mas encontrar um ponto de encontro: um pertencimento que não exige desaparecimento, e uma autenticidade que respeita o coletivo.

Essa busca por equilíbrio não é teórica — ela acontece o tempo todo, em pequenas decisões diárias. Como se vestir, como responder a um elogio, o que postar nas redes sociais, quando falar de uma conquista pessoal…

Na prática, muitos aprendem a “desafinar” só até certo ponto: o bastante para manter a integridade, mas não o suficiente para provocar desconforto. A verdade é que, por mais que o movimento Anti-Jantelov ganhe força entre vozes mais jovens e globalizadas, ele ainda é visto com desconfiança em muitos círculos sociais noruegueses.

No ambiente de trabalho, por exemplo, valoriza-se o trabalho em equipe, o tom neutro e a ausência de hierarquias aparentes. Falar demais sobre si mesmo ou tentar se destacar pode ser interpretado como arrogância — ou pior, como deslealdade ao grupo.

Na criação dos filhos, há um esforço constante em ensinar que todos têm o mesmo valor, que ninguém deve se achar superior. É uma intenção bonita, mas que pode, sem perceber, inibir a autoconfiança. Há um equilíbrio delicado entre ensinar humildade e permitir que a criança se sinta única e segura de si.

Para quem vem de fora — especialmente de culturas mais expressivas, como a brasileira —, o desafio é ainda maior. O que parece “normal” para nós, aqui pode soar exagerado. Enquanto no Brasil sou considerada uma pessoa quieta, bem introvertida, aqui na Noruega sou vista como expressiva — para não dizer intensa. Isso porque, na cultura brasileira, expressar sentimentos em voz alta é algo natural. Dizemos que amamos um bolo, que odiamos filas, que adoramos uma música. É tudo no superlativo, cheio de exclamações e entusiasmo.

Na Noruega, tudo é mais contido. Bem mais.

Se um norueguês realmente gostou de algo, ele provavelmente vai dizer:

"Det var ikke så verst.” (Não foi tão ruim.)


Ou, no melhor dos casos:
"Det var faktisk ganske bra." (Foi até que bem bom.)

E isso, acredite, é um elogio daqueles!

Eles raramente usam palavras como elsker (amar) para coisas do cotidiano. O “eu amo isso” que escapa da nossa boca sem pensar seria, para eles, um exagero. Emoções são filtradas, medidas, digeridas em silêncio — e muitas vezes expressas mais pelo tom de voz (ou pela ausência dele) do que pelas palavras.

Outro exemplo:


Se algo deu errado, um brasileiro pode dizer:
“Nossa, que horror!”


Já um norueguês, diante da mesma situação, talvez diga:
"Det var litt upraktisk." (Foi meio… inconveniente.)

Ou seja: enquanto a gente declara guerra, eles levantam uma sobrancelha.

Essa forma de se comunicar é tão parte da cultura quanto a neve no inverno. E entendê-la é essencial para perceber que, muitas vezes, o que parece frieza é apenas um jeito diferente — mais discreto, mais reservado — de estar no mundo.

Então, aos poucos, a gente aprende a calibrar o volume: falar com menos entusiasmo, escolher melhor as palavras, evitar parecer que está “se promovendo”.

Mas isso também tem um custo. Quando a espontaneidade vira cautela constante, é fácil perder o brilho nos olhos. E é por isso que o movimento Anti-Jantelov, mesmo discreto, tem seu valor: ele lembra que não existe coletividade saudável sem espaço para a individualidade.

Talvez o caminho não seja abolir a Jantelov — mas reinterpretá-la. Preservar o que ela tem de generoso (o senso de igualdade, a valorização do comum), enquanto abrimos espaço para que as pessoas possam ser autênticas sem culpa ou medo de exclusão.

Na prática, esse equilíbrio pode começar com gestos simples:

  • Elogiar com mais abertura,

  • Reconhecer conquistas sem ironia,

  • Celebrar talentos, mesmo quando não são “medianos”,

  • Permitir-se brilhar de vez em quando — e permitir que os outros brilhem também.

A Noruega está mudando. Lentamente, mas está. E talvez, nessa mudança, haja espaço para uma nova ética social: uma que una o melhor da Jantelov com o melhor do Anti-Jantelov — onde ninguém se ache mais, mas todos possam ser inteiros.



Entre Jantelov e Anti-Jantelov: o meio-termo saudável

Depois de toda a introdução sobre a Jantelov no post anterior, e de apresentar neste texto o movimento contrário a ela — o Anti-Jantelov —, chego, finalmente, ao ponto que acredito ser o mais frutífero: o meio-termo saudável entre os dois conceitos, pois há sabedoria dos dois lados.

Gosto da Jantelov porque ela…

  • Estimula a humildade,

  • Desencoraja a arrogância e o exibicionismo,

  • E nos convida a lembrar que o coletivo importa.

Mas também gosto do movimento Anti-Jantelov porque desejo que…

  • Cada pessoa possa expressar quem é, sem medo,

  • O talento seja incentivado sem culpa,

  • E o crescimento pessoal não precise ser escondido para ser aceito.

Na convivência entre essas duas forças — o impulso de se conter e o desejo de ser inteiro — encontrei um caminho possível. Um conjunto de princípios que me ajuda a manter o equilíbrio entre pertencimento e autenticidade, entre humildade e expressão.

  • Não é uma fórmula. É mais como um código pessoal — uma ética interna que criei para mim, e que compartilho agora, na esperança de que ressoe também com você.


Helhetsloven - a lei da inteireza

Depois de viver entre extremos — o silêncio que esconde e a expressão que exagera —, encontrei um ponto de equilíbrio que faz sentido para mim.

Chamo de Helhetsloven, a lei da inteireza.


Não é um manifesto contra a Jantelov, nem uma rendição ao Anti-Jantelov.

É uma proposta pessoal de convivência que valoriza o coletivo sem me apagar e respeita a individualidade sem inflar o ego.

É o lembrete de que não preciso escolher entre pertencer e ser quem sou.
Que posso crescer com humildade, brilhar com leveza e existir com verdade.
Que há espaço para a firmeza sem dureza, para o silêncio com presença, para a coragem com gentileza.

Helhetsloven é o nome que dou ao compromisso de viver inteira — mesmo em uma cultura que, às vezes, pede que sejamos menos.

É a bússola que me ajuda a andar com consciência, e a deixar pegadas de equilíbrio por onde passo.


Helhetsloven - A Lei da Inteireza

1. Eu sou única, mas não melhor.

Reconheço meus talentos e meu valor, mas sei que isso não me torna superior a ninguém. Somos todos importantes — apenas em formas diferentes.


2. Eu brilho, mas não ofusco.

Permito que minhas qualidades apareçam, mas sem fazer delas um palco. Prefiro que vejam minha essência do que meu ego.


3. Eu cresço, mas também cuido.

Busco meu desenvolvimento pessoal, intelectual e emocional, mas sem esquecer que meu crescimento deve respeitar e, quando possível, inspirar os outros.


4. Eu sou visível quando é necessário, não para ser aplaudida.

Não fujo do reconhecimento, mas também não o persigo. Quero ser reconhecida pelo que contribuo, não pelo que aparento.


5. Eu ajo com autenticidade, não com performance.

Minhas ações vêm de dentro, e não da necessidade de aprovação externa. Não preciso ser extraordinária — só preciso ser coerente com quem sou.


6. Eu compartilho o espaço, sem me apagar.

Dou voz aos outros e celebro suas conquistas, mas não apago minha própria chama para caber em espaços que me pedem para ser menos.


7. Eu respeito a quietude e o ruído.

Sei quando falar, sei quando ouvir. Sei que o silêncio pode ser força, e que a fala pode ser ponte — se usada com verdade.


8. Eu não me encolho, nem me exalto — eu me posiciono.

Não preciso diminuir quem sou para ser aceita. Também não preciso me inflar para ser respeitada. Minha presença é suficiente quando estou alinhada comigo mesma.


9. Eu acredito no poder de ser inteira.

Não sou um papel, nem um rótulo. Sou um ser complexo, cheio de nuances, e todas essas partes têm valor — até as que ainda estou descobrindo.


10. Eu escolho o caminho do bem.

No fim das contas, meu propósito não é ser reconhecida, temida ou admirada. É ser uma presença que constrói, apoia, desperta e deixa pegadas de cuidado no mundo.



CONCLUSÃO

Se existe uma verdade que aprendi vivendo entre a cultura brasileira e a cultura norueguesa, é que não precisamos escolher entre nos esconder ou nos exibir. Existe um espaço no meio, onde podemos ser visíveis sem sermos vaidosos, serenos sem sermos submissos. Onde podemos existir com leveza, com clareza e com dignidade.

Talvez o mundo precise menos de pessoas perfeitas, e mais de pessoas conscientes de quem são — e dispostas a viver com propósito, cuidado e verdade.


Esse caminho entre a Jantelov e a Anti-Jantelov é, para mim, um convite a ser inteira — sem deixar ninguém para trás, nem a mim mesma.

E é nessa direção que eu sigo.

E você, com qual das três se identifica mais: Janteloven, Anti-Janteloven ou Helhetsloven?

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Janteloven - parte 1: o que é e como funciona na prática